O papa
reconheceu, na terça-feira, que padres cometem abusos sexuais contra
religiosas. "Há sacerdotes e bispos que fizeram isso e ainda fazem",
declarou o pontífice.
A Comunidade
de Saint Jean – apontada pelo Vaticano como uma ordem onde as freiras foram
escravizadas, até sexualmente – foi fundada em 1975 pelo padre francês
Marie-Dominique Philippe.
Autor da
"teoria do amor de amizade", que ele utilizava para assediar
religiosas e justificar os abusos, o padre Philippe, falecido em 2006, foi
acusado por autoridades da Igreja de "desvios afetivos e sexuais".
Vários padres da Comunidade de Saint Jean
(apelidados de "cinzinhas" por causa da cor de suas batinas) foram
julgados na França por agressões sexuais, incluindo pedofilia.
Os rumores existiam há anos. Iniciativa rara no
meios religiosos, o padre Thomas Joaquim, que dirige a ordem desde 2010,
alertou internamente os membros da congregação que seu fundador e outros
religiosos cometeram "gestos contrários à castidade".
"Há sacerdotes
e bispos que fizeram isso e ainda fazem",
declarou o Papa Francisco, ao
falar da ordem.
Em um "livro negro da fraternidade de Saint
Jean", realizado pela associação de Ajuda às Vítimas de Desvios de
Movimentos Religiosos na Europa (Avref), há depoimentos de vítimas do padre
Philippe e de outros clérigos.
Segundo a associação, havia um processo de
manipulação mental, misturado à religião, para assediar as freiras e
culpabilizá-las.
"Levei 15 anos para assumir que esse herói da
minha vida era um doente. Para entender também que não era estupidez da minha
parte, mas sim manipulação, domínio e lavagem cerebral", diz uma das
vítimas no relatório da associação, que aponta ainda casos de suicídios na
congregação.
Padres também relataram ter sofrido abusos sexuais.
O irmão do fundador da Saint Jean, padre Thomas Philippe, foi acusado de
práticas do mesmo tipo.
Esse não foi o único problema da Comunidade de
Saint Jean para o Vaticano. Freiras acusadas de tiranizar outras religiosas
foram expulsas da Igreja e ramificações da ordem foram extintas.
A Comunidade de Saint Jean possui três congregações
: Os Irmãos de Saint Jean, As Irmãs Contemplativas, fundada em 1982, e As Irmãs
Apostólicas, criada em 1984.
Pressões psicológicas, ausência de cuidados
médicos, substituídos por sessões de exorcismo, isolamento e ruptura dos laços
familiares eram algumas das práticas recorrentes sofridas pelas freiras das
Irmãs Contemplativas.
Freiras da
ordem acusadas de tiranizar
outras religiosas foram expulsas da Igreja
Para vítimas desse abuso mental, que deviam ter uma
"obediência cega" às freiras superiores, as práticas da congregação
eram as mesmas de uma seita.
"As consequências psicológicas do abuso
espiritual são as mesmas do abuso sexual porque há uma violação da
intimidade", afirma a associação Avref.
Segundo o jornal francês A Vida, que trata de temas
ligados ao catolicismo, em um dos monastérios de Saint Jean o consumo de
remédios antipsicóticos e ansiolíticos chegava a mil euros (cerca de R$ 4,4
mil) por mês.
Em 2005, um ramo das Irmãs Contemplativas foi
dissolvido pela Arquidiocese de Lyon, um medida rara, após acusações e queixas
na Justiça de abuso psicológico.
Em 2009, a madre superiora, irmã Alix, considerada
tirânica, e outras três principais responsáveis, foram expulsas da Igreja
Católica. Elas se instalaram na Espanha, em 2012, com uma centena de religiosas
dissidentes, mas o Vaticano dissolveu a comunidade.
Exorcismo
Uma ex-freira das Irmãs Contemplativas de Saint
Jean decidiu expor publicamente as torturas mentais, contadas no livro O
Silêncio da Virgem.
Marie Laure Jansenss, hoje casada e com filhos, diz
ter vivido "11 anos em uma seita". Ela não menciona eventuais abusos
sexuais.
"Era preciso pedir permissão para tudo, até
para tomar uma aspirina. Perdemos nossa personalidade e nosso discernimento.
Uma armadilha mental se fecha sobre nós", diz.
No livro, ela conta sobre casos comentados na época
de freiras anoréxicas e que tentaram se matar. Jansenss afirma que as
religiosas não podiam conversar sobre assuntos pessoais entre elas e viviam
isoladamente seus problemas.
Janssens afirma que as manipulações sofridas tinham
sempre uma dimensão espiritual.
"Elas utilizavam minha vontade de ser fiel a
Deus para me manipular. Se eu andasse rápido, não era fraterna com as irmãs. Se
questionava um curso, eu era crítica e estava agindo com o demônio",
afirma.
A ex-freira foi diagnosticada com um tumor no
estômago, mas, em vez de ter cuidados médicos, ela teve de consultar um padre
exorcista, afirma.
Após deixar a congregação, ela teve acompanhamento
psicológico. De acordo com Janssens, a Igreja pediu que ela não revelasse o que
viveu na ordem de Saint Jean.
Segundo a associação Avref, de apoio às vítimas de
movimentos religiosos, a Comunidade de Saint Jean perdeu centenas de padres e
freiras pelo mundo após a revelação dos escândalos de abusos sexuais e mentais.
Daniela Fernandes
De Paris para a BBC News Brasil
Fotos: ANDREAS SOANDREAS SOLARO/AFP/GETTY IMAGES