A quaresma é um tempo privilegiado, para cada cristão assim como para
toda a igreja, para realizar a verdade: realizar a verdade encontrando e
reencontrando o essencial da vida cristã e libertando-se do «excesso» que «vem
do Maligno» (Mateus 5, 37); realizar a verdade purificando o próprio falar da
falsidade; realizar a verdade descobrindo entre o dizer e o fazer, entre
palavra e ação, ambas chamadas a obedecer ao grande mandamento do amor ao
próximo. O Papa Francisco na mensagem para a quaresma indica os elementos
fundamentais para aquele realizar a verdade que é vital para alcançar a
conversão: a escuta da palavra profética, o conhecimento da misericórdia de
Deus, e portanto o «fazer misericórdia».
Sempre para o cristão no princípio é a escuta, assim como para Deus «no
princípio é o Verbo» (cf. João 1, 1). Por conseguinte, toda a vida cristã está
sob a primazia da escuta e exige uma escuta orante, obediente, efectiva. Os
profetas da antiga aliança afirmaram que «a escuta obediente é melhor que o
sacrifício» (1 Samuel, 15, 22), porque abre ao conhecimento do Deus vivo, faz
nascer a confiança num Deus confiável, gera amor por ele e pela sua vontade.
Quando o crente na escuta inicia o próprio caminho de conhecimento do Senhor,
conhece em primeiro lugar a sua misericórdia, sentimento de um pai (chesed) com
vísceras de misericórdia (rechem-rachamim), amor visceral sempre fiel que nunca
esmorece, inclusive quando o crente ou a comunidade cristã no seu conjunto
chegam a contradizer o amor de Deus até romper a aliança. Sim, o comportamento
misericordioso de Deus para com o pecador não é justiça retributiva nem
meritocrática, mas é o desejo de que o pecador não morra mas viva, se converta
e viva a comunhão com o seu Senhor (cf. Ezequiel, 18, 23; 33, 11).
Este conhecimento do amor misericordioso de Deus foi-nos dado plenamente
por Jesus, o Filho que nos narrou Deus (exeghésato, João 1, 18); ele que,
crucificado, quis ser «incluído entre os pecadores» (Isaías 53, 12; Lucas 22,
37), como sempre tinha vivido, alcançando-os na sua distância. Por esta razão,
Paulo com maravilha e por experiência pessoal poderá anunciar: «Quando éramos
ainda pecadores, Cristo morreu por nós» e «quando éramos ainda inimigos, fomos
reconciliados com Deus» (Romanos 5, 8.10). É esta a misericórdia de Deus por
nós que devemos conhecer e experimentar, para nos tornarmos nós mesmos homens e
mulheres de misericórdia em relação aos outros.
Assim, o Papa Francisco recorda-nos que devemos «fazer misericórdia» ao
nosso próximo com ações concretas e quotidianas. Assim como o samaritano «fez
misericórdia» (Lucas 10, 37), também nós somos chamados a fazer no dia-a-dia,
na história, porque ao nosso lado há sempre um pobre concreto: faminto, desnutrido,
em fuga, estrangeiro, descartado, esquecido, último... A nossa consciência
humana, instruída pela palavra de Deus, deve aprender a ver, a «discernir o
pobre» (cf. Salmos 41, 2), para se sentir responsável e encarregar-se de ações
que sejam de libertação, alívio, consolação dos males que afligem os pobres.
Ações ou obras de misericórdia para com os corpos e as vidas psíquicas e
espirituais dos outros, que são sempre corpo e espírito intimamente unidos.
Todavia, para o Papa – não o esqueçamos – os pobres não são apenas os primeiros
destinatários da nossa caridade, mas são uma cátedra magisterial, porque podem
ensinar-nos o que não sabemos, ou seja, aquela «sabedoria da cruz» (cf. 1
Coríntio 1, 17-18) que quem não é pobre ignora. Aliás, no centro da história,
segundo a visão apocalítica de João, está o cordeiro inocente, degolado mas
vencedor sobre a morte (cf. Apocalipse 5, 7-14; 7, 17), emblema de cada vítima,
de cada perseguido, de cada justo não reconhecido. Os pobres são – não deixa de
afirmar o Papa Francisco – a carne de Cristo, são a sarça ardente em que Deus
está presente e perante as quais é necessário inclinar-se (cf. Êxodo 3, 1-6).
Mas é significativo que entre os pobres o Papa nos convida a colocar
também os ricos: porquê? Em primeiro lugar porque mais cedo ou mais tarde na
vida se entra a fazer parte da categoria dos pobres, por causa da doença,
velhice, isolamento, desgraças da vida. E também porque o rico, não sabendo
reconhecer que é pobre, de facto é mais miserável que os pobres. O rico que não
vê o irmão necessitado, é um cego; se não escuta o grito dos pobres, é um
surdo; se não sabe compartilhar o que tem, está destinado a uma solidão
desesperadora. Que os ricos saibam: o pobre que encontram é alguém que os chama
à conversão, é alguém que passa a mendigar a conversão, é um verdadeiro mestre
que nos “dá um sinal”, que nos indica uma via de salvação. Moisés, os profetas
e sobretudo o Evangelho continuam constantemente a admoestar: “Reconduzi-nos a
vós, Senhor; e voltaremos” (Lamentações 5, 21)»
Enzo Bianchi
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